O Código de Defesa do Consumidor (CDC), instituído pela Lei n.º 8.078/90, representa importante marco na proteção jurídica das relações de consumo no Brasil, consagrando o princípio da vulnerabilidade do consumidor e a responsabilidade objetiva do fornecedor pelos vícios dos produtos e serviços.

O diploma legal assegura a proteção contra práticas abusivas e garante a reparação de danos decorrentes de defeitos nos produtos e serviços ofertados no mercado. Um dos aspectos mais relevantes e recorrentes no cotidiano forense é a discussão sobre a responsabilidade civil por vício oculto em veículos automotores.

Esses vícios, por não serem identificáveis no momento da aquisição, levantam discussões relevantes sobre a responsabilidade solidária entre concessionária e fabricante, seus limites e hipóteses de afastamento, bem como os direitos do consumidor diante da constatação do vício.

No cenário contemporâneo das relações de consumo, concessionárias e fabricantes, enquanto fornecedores solidários, assumem papel central na cadeia de consumo e, por isso, devem estar atentos aos contornos legais da responsabilidade por defeitos que se revelam após a entrega do bem ao consumidor.

  1. A CONFIGURAÇÃO DO VÍCIO OCULTO E A APLICAÇÃO DO CDC

 O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 18, estabelece:

 Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

 Isso significa que os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de qualidade que tornem o produto impróprio ou inadequado ao consumo a que se destina, ou lhe diminuam o valor.

O vício oculto, por sua vez, é aquele que não é detectável pelo consumidor médio no momento da aquisição, manifestando-se posteriormente ao uso.

A legislação ainda estabelece que, nos casos de vício oculto, o prazo decadencial de 90 dias para reclamação começa a contar a partir do momento em que o vício se manifesta (art. 26, §3º, do CDC), conferindo ao consumidor maior proteção.

  1. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA ENTRE CONCESSIONÁRIA E FABRICANTE

O CDC adotou como regra a responsabilidade objetiva e solidária dos fornecedores, conforme previsto expressamente no caput do art. 18, de modo que tanto o fabricante quanto a concessionária revendedora podem ser responsabilizados pelo vício do produto, independentemente de culpa. Essa solidariedade decorre da cadeia de fornecimento e da teoria do risco da atividade.

Inclusive, a jurisprudência pátria é uníssona neste sentido:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC . AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO FABRICANTE DO VEÍCULO PELO VÍCIO DO PRODUTO OU DO SERVIÇO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 568 DO STJ. DECISÃO MANTIDA . AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. 1. Aplica-se o NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC. 2 . O STJ firmou o entendimento de que a concessionária e o fabricante de automóveis possuem responsabilidade solidária em relação ao vício do produto ou defeito do serviço, por integrarem a cadeia de consumo. 3. Não sendo a linha argumentativa apresentada capaz de evidenciar a inadequação dos fundamentos invocados pela decisão agravada, o presente agravo não se revela apt o a alterar o conteúdo do julgado impugnado, devendo ele ser integralmente mantido em seus próprios termos. 4 . Agravo interno não provido. (STJ – AgInt no AREsp: 1939147 RN 2021/0218688-8, Data de Julgamento: 08/08/2022, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/08/2022)

Portanto, ainda que o defeito tenha origem na fabricação, a concessionária que comercializa o veículo responde solidariamente pelos prejuízos sofridos pelo consumidor, inclusive nos casos de vício oculto. Essa responsabilidade não se elide pela alegação de ausência de culpa ou desconhecimento do defeito. 

  1. DISTINÇÕES FUNCIONAIS ENTRE FABRICANTE E CONCESSIONÁRIA

 Embora a responsabilidade seja solidária, é importante distinguir os papéis desempenhados por cada agente na cadeia de fornecimento:

  • O fabricante é responsável por vícios de projeto, fabricação ou montagem.
  • A concessionária pode ser responsabilizada por vícios detectáveis, má conservação do veículo, omissão de informações relevantes, falha na prestação do serviço de entrega ou de revisão, entre outros aspectos ligados à revenda.

Tal diferenciação é relevante especialmente para eventuais ações regressivas, nas quais aquele agende que integrou a cadeia de fornecimento e arcou com a indenização busca o ressarcimento junto ao corresponsável, devendo ser apurada a contribuição efetiva de cada um para o evento danoso. 

  1. EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE E PROVA TÉCNICA

 A defesa dos fornecedores deve estar centrada na produção de prova robusta que demonstre: a) a inexistência do vício; b) a ocorrência do defeito por desgaste natural ou mau uso do bem; c) a ausência de nexo causal entre o defeito e o suposto prejuízo.

Adicionalmente, é possível afastar a responsabilidade nos termos do art. 12, §3º do CDC, caso se comprove: a) que não colocou o produto no mercado; b) que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; e, c) a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. 

A realização de perícia técnica, portanto, se mostra imprescindível para comprovar a origem e o grau do defeito, especialmente nos casos em que o vício é alegado tardiamente ou sem subsídios documentais consistentes. 

  1. O DANO MORAL EM CASO DE VÍCIO OCULTO 

A responsabilização civil de um fornecedor pela existência de um vício oculto nem sempre autoriza a condenação em danos morais. A jurisprudência pátria caminha no sentido de que o mero descumprimento contratual ou aborrecimentos típicos da vida em sociedade não justificam reparação extrapatrimonial, sendo necessária a comprovação do efetivo abalo psíquico ou da violação de direitos da personalidade.

EMENTA: APELAÇÃO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL . MERO ABORRECIMENTO. INDENIZAÇÃO. INDEVIDA. É cediço que para a configuração do dever de indenizar há que se ter como inequivocamente provado e comprovado pela parte ofendida as seguintes condições: o dano, a culpa ou dolo e o nexo causal . O dano moral pressupõe a ofensa anormal aos direitos da personalidade. Aborrecimentos e chateações não configuram dano de cunho moral, sendo indevido o pagamento de indenização a tal título decorrente de tais fatos.

(TJ-MG – AC: 10000210706388001 MG, Relator.: Cabral da Silva, Data de Julgamento: 11/05/2021, Câmaras Cíveis / 10ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 19/05/2021)

Assim, as concessionárias e fabricantes devem impugnar de forma incisiva os pedidos de indenização por danos morais, exigindo a demonstração concreta do sofrimento psíquico ou dano à imagem, honra ou integridade emocional do consumidor para o seu reconhecimento. 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A constatação de vício oculto em veículos enseja a aplicação da responsabilidade objetiva e solidária entre os membros da cadeia de fornecimento, em especial a concessionária e o fabricante.

A atuação estratégica na defesa das empresas do setor automotivo exige o domínio da jurisprudência, a produção de prova técnica detalhada e o cuidado com a distinção entre vício e desgaste natural.

Por fim, embora o consumidor esteja amparado pela legislação, o uso indiscriminado do direito à reparação pode dar margem a litígios infundados, sendo essencial o papel da advocacia técnica na preservação do equilíbrio das relações de consumo e na manutenção da segurança jurídica.