O direito brasileiro, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, conferiu maior relevo à proteção da dignidade da pessoa humana e à reparação dos danos extrapatrimoniais, entendidos como aqueles que atingem a honra, a dignidade e a integridade psíquica do indivíduo, entre outras questões vinculadas aos direitos da personalidade. Com isso, consolidou-se a possibilidade de pleitear a reparação por danos morais de forma autônoma, independentemente da existência de prejuízo material.
Apesar da previsão legal e do amplo reconhecimento jurisprudencial acerca do dano moral, é importante destacar que não se pode considerar que qualquer situação desagradável ou incômoda seja suficiente para caracterizar dano moral indenizável, sob pena de se banalizar o importante instituto.
No contexto dos acidentes de trânsito, especialmente aqueles em que não há vítimas, ou seja, não há lesões físicas graves ou morte, é recorrente a tentativa de se obter indenização por supostos danos morais com fundamento tão somente na mera ocorrência do sinistro. Essa pretensão, todavia, encontra limites na jurisprudência consolidada e na própria lógica do instituto do dano moral.
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A TEORIA GERAL DO DANO MORAL E O PAPEL DA PROVA NA RESPONSABILIDADE CIVIL
O Código Civil, ao tratar do ato ilícito, estabelece:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Observa-se que o Código Civil adotou, como regra, a teoria subjetiva da responsabilidade civil, na qual para o reconhecimento do dever de indenizar deverão estar presentes três requisitos: (i) conduta culposa ou dolosa, (ii) dano efetivo e (iii) nexo causal entre a conduta e o prejuízo. A ausência de qualquer desses elementos descaracteriza o dever de reparação.
Portanto, a responsabilidade civil por dano moral exige a produção de prova do abalo psíquico ou da violação de direitos da personalidade, salvo nas hipóteses excepcionalíssimas em que o sofrimento é presumido, como em casos de morte de parente próximo, cárcere privado ou erro médico grave.
2. O DANO MORAL IN RE IPSA
Conforme apontado, o reconhecimento da responsabilidade civil quando não há prova do dano é admitido de forma excepcional. É o chamado dano moral in re ipsa, que é aquele presumido pelo ordenamento jurídico em virtude da própria natureza do fato danoso.
Nessas hipóteses, entende-se que a violação é tão evidente e grave que prescinde da demonstração do sofrimento psíquico ou da dor experimentada pela vítima, bastando a prova do fato gerador.
Contudo, a presunção do dano moral não pode ser aplicada indiscriminadamente. É necessário analisar o contexto e a repercussão do ato lesivo, sob pena de banalização do instituto e o desvirtuamento da função compensatória e pedagógica da responsabilidade civil.
3. O ACIDENTE SEM VÍTIMAS COMO MERO ABORRECIMENTO
É inegável que o envolvimento em um acidente de trânsito pode causar aborrecimentos, como atraso, discussões com o outro condutor, necessidade de acionar o seguro, entre outros transtornos. No entanto, esses fatos integram os riscos inerentes à convivência social e à vida em sociedade, não sendo suficientes, por si sós, para caracterizar um dano moral indenizável.
O Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que nos acidentes de trânsito nem todo aborrecimento configura dano moral, destacando a necessidade de se distinguir o mero dissabor do verdadeiro sofrimento psíquico ou da ofensa à dignidade da pessoa:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS DECORRENTES DE COLISÃO DE VEÍCULOS. ACIDENTE SEM VÍTIMA. DANO MORAL IN RE IPSA. AFASTAMENTO. NECESSIDADE DE APRECIAÇÃO DE CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE EM RECURSO ESPECIAL. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. O movimento de despatrimonialização do direito privado, que permitiu, antes mesmo da existência de previsão legal, a compensação de dano moral não se compatibiliza com a vulgarização dos danos extrapatrimoniais. 2. O dano moral in re ipsa reconhecido pela jurisprudência do STJ é aquele decorrente da prática de condutas lesivas aos direitos individuais ou perpetradas contra bens personalíssimos. Precedentes. 3. Não caracteriza dano moral in re ipsa os danos decorrentes de acidentes de veículos automotores sem vítimas, os quais normalmente se resolvem por meio de reparação de danos patrimoniais. 4. A condenação à compensação de danos morais, nesses casos, depende de comprovação de circunstâncias peculiares que demonstrem o extrapolamento da esfera exclusivamente patrimonial, o que demanda exame de fatos e provas. 5. Recurso especial provido. (REsp n. 1.653.413/RJ, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 5/6/2018, DJe de 8/6/2018.)
Segundo o entendimento do STJ, ampliar demasiadamente o campo de incidência do dano moral presumido contrariaria a lógica da despatrimonialização do direito civil, cujo objetivo é justamente evitar que danos extrapatrimoniais sejam tratados como fontes de enriquecimento. Nesse sentido, o Min. Relator, Marco Aurélio Bellizze, alertou para o risco de se fomentar a chamada “indústria do dano moral”, onde qualquer evento mínimo e cotidiano seria potencialmente gerador de indenização.
O tema da “indústria do dano moral” também foi objeto de discussão pelo eg. STJ quando do julgamento do REsp nº 1.426.710/RS (2013/0416511-1), oportunidade em que a Ministra Nancy Andrighi consignou:
“Pelo contrário, deve-se identificar no caso concreto uma verdadeira agressão ou atentado à dignidade da pessoa humana, capaz de ensejar sofrimentos e humilhações intensos, descompondo o equilíbrio psicológico do indivíduo por um período de tempo desarrazoado.”
(…)
“Essa dificuldade em realizar a prova do prejuízo moral – que realmente existe – acaba por se transformar na porta de entrada de muitos dos abusos e excessos que cumpre combater com rigor, para o resgate da dignidade do próprio instituto. Em outra perspectiva, a dificuldade de se provar a dor oculta transforma as partes em atores de um espetáculo para demonstrar a dor que não se sente ou, diga-se ainda, para apresentar aquela dor que, além de não se sentir, é incapaz de configurar dano moral.”
O posicionamento restritivo do STJ acerca do reconhecimento do dano moral em acidentes sem vítima tem sido replicado com frequência por outros Tribunais. Veja-se:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO INDENIZATÓRIA – ACIDENTE DE TRÂNSITO – BOLETIM DE OCORRÊNCIA – PRESUNÇÃO RELATIVA DE VERACIDADE – PROVA TESTEMUNHAL CORROBORANTE – ATO ILÍCITO E CULPOSO IMPUTÁVEL AO RÉU – DANO MATERIAL – COMPROVAÇÃO – DANO MORAL – NÃO CONFIGURAÇÃO – MERO ABORRECIMENTO. A presunção de veracidade de que goza o boletim de ocorrência, documento dotado de fé pública, incide sobre os fatos que a autoridade policial declara ocorridos em sua presença e não sobre a materialidade daqueles meramente narrados por terceiros. Estando a declaração constante do boletim de ocorrência em consonância com a prova testemunhal produzida nos autos, deve ser considerado. Tendo o réu sido o agente causador do acidente, deverá ele indenizar materialmente o autor pelos prejuízos patrimoniais oriundos do evento. A condenação por danos morais em caso de acidente não é automática. Para a sua configuração, há de ser ter a comprovação de dano extrapatrimonial que supere o mero aborrecimento cotidiano. (TJMG – Apelação Cível 1.0024.08.247666-4/002, Relator(a): Des.(a) Valéria Rodrigues Queiroz, 15ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 23/05/2019, publicação da súmula em 31/05/2019)
APELAÇÃO – ACIDENTE DE TRÂNSITO SEM VÍTIMAS – DANO MORAL – INOCORRÊNCIA. O dano moral pressupõe, minimamente, a violação de direitos de personalidade, de modo que a simples colisão, ainda que gere danos materiais elevados, não é capaz de dar ensejo à indenização por danos morais ante a inexistência de vítimas com lesões corporais. RECURSO DE APELAÇÃO IMPROVIDO. (TJ-SP – Apelação Cível: 10188583020208260562 Santos, Relator.: João Battaus Neto, Data de Julgamento: 12/09/2024, Núcleo de Justiça 4 .0 em Segundo Grau – Turma II (Direito Privado 3), Data de Publicação: 12/09/2024)
Evidencia-se, assim, que os Tribunais Pátrios tem afastado dano moral in re ipsa nos acidentes de trânsito simples, exigindo-se a demonstração concreta da lesão à esfera extrapatrimonial da vítima e prova do efetivo abalo moral para o reconhecimento da responsabilidade civil.
Apenas em algumas circunstâncias específicas é que o dano in re ipsa tem sido reconhecido, tais como quando há a presença de menores no veículo, ameaças à integridade física, exposição a risco extremo ou situações que provoquem humilhação ou sofrimento psicológico significativo. Essas peculiaridades, contudo, devem ser alegadas, comprovadas e analisadas individualmente.
Assim, nos acidentes de trânsito sem vítimas, é indispensável que a parte ofendida comprove que, em decorrência do evento, sofreu algum tipo de humilhação, constrangimento público, perturbação emocional duradoura ou qualquer outro impacto relevante à sua integridade moral para que faça jus à reparação a título de danos morais.
4. CONCLUSÃO
A responsabilidade civil por dano moral não pode ser utilizada como instrumento de enriquecimento sem causa nem como válvula de escape para todos os infortúnios da vida em sociedade. Acidentes de trânsito sem vítimas, embora desagradáveis, fazem parte da realidade urbana moderna e não geram, por si sós, direito à indenização por dano moral.
A configuração do dano moral, nesses casos, exige a demonstração de consequências concretas que ultrapassem o simples aborrecimento. O ordenamento jurídico deve ser instrumento de justiça, não de compensação por meras contrariedades cotidianas.
Portanto, é indevida a presunção do dano moral in re ipsa em acidentes de trânsito sem vítimas. O julgador deve exigir prova específica do abalo moral, sob pena de se admitir uma inversão indevida da lógica da responsabilidade civil e fomentar a litigância infundada.