Desde a publicação da Lei nº 12.441 de 2011 suscitou-se polêmica divergência quanto à possibilidade de instituição de EIRELI também por pessoas jurídicas. Isto, talvez, em decorrência da redação aberta dada ao art. 980-A do Código Civil, nele inserido pelo art. 2º da nova lei, que apenas menciona a constituição de EIRELI por “pessoa”, de forma ampla, sem cumprir em fazer distinção se pessoa natural ou jurídica, como se vê: “Art. 980-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no País”.
De fato, a Lei nº 12.441/2011 não proíbe a instituição por pessoa jurídica, interpretando-se, a princípio, que lícita seria tanto a constituição por pessoa natural quanto por pessoa jurídica. No entanto, a despeito de a lei não ter feito qualquer restrição nesse sentido, o DNRC, ao editar a Instrução Normativa nº 117 de 2011, estabeleceu impedimento para a titularidade de EIRELI por pessoas jurídicas, nos seguintes termos: “Não pode ser titular de EIRELI a pessoa jurídica, bem assim a pessoa natural impedida por norma constitucional ou por lei especial”. No mesmo sentido, o Enunciado 468 da V Jornada de Direito Civil: “A empresa individual de responsabilidade limitada só poderá ser constituída por pessoa natural”.
No entanto, a despeito dessa orientação, há quem entenda ser possível a instituição de EIRELI por pessoa jurídica, como expressa Marlon Tomazzete, corroborando o pensamento de Fábio Ulhoa Coelho, Ricardo Negrão e Paulo Leonardo Vilela Cardoso: “Todavia, diante da positivação da EIRELI no Brasil, não vemos qualquer impedimento. Embora normalmente ligada a pessoas físicas, nada impede no nosso ordenamento jurídico que a EIRELI seja constituída também por pessoas jurídicas, inclusive as de fins não empresariais para exercício de atividades lucrativas subsidiárias”.
E ainda, para Paulo Leonardo Vilela Cardoso, autor do projeto de lei nº 4.605 de 2009, que resultou na Lei nº 12.441 de 2011: “Por meio da Lei n.12.441/2011 poderá a empresa principal constituir uma menor, para exercer a atividade pretendida (…). Tal criação, além de facilitar a escrita contábil e regular da empresa, permite uma melhor organização dos negócios”.
Destarte, a restrição imposta pelo DNRC é objeto de críticas pela doutrina, que aponta a ilegalidade da referida instrução normativa, ao aduzir a ausência de legitimidade do órgão para impor exceção dessa ordem à lei, que, ressalta-se, não fez qualquer reserva sobre o assunto. A esse respeito, Alexandre Bueno Cateb afirma, em artigo publicado no jornal Carta Forense: “A recomendação do DNRC é seguida pelas Juntas Comerciais, a despeito de uma possível falta de legitimidade do DNRC para regulamentar e restringir o alcance da lei, bem como por uma possível alegação de violação da garantia constitucional de que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de alguma coisa senão em virtude de lei”. Fato não menos curioso (para não dizer intrigante e preocupante), vários cartórios de registro de pessoas jurídicas permitem a abertura de EIRELI, oficialmente denominada de EIRELI/Simples pela Receita Federal do Brasil, por pessoa jurídica. Assim, há inclusive a possibilidade de uma EIRELI simples ser titular de outra EIRELI simples”.
Não é outro o entendimento do professor Armando Luiz Rovai, presidente da Junta Comercial de São Paulo, em recente artigo publicado no Valor Econômico: “O DNRC, salvo melhor juízo, não deveria extrapolar suas competências ao estipular que “Não pode ser titular de Eireli a pessoa jurídica (…), pois compete exclusivamente ao Poder Legislativo vedar ou deixar de vedar a titularidade de uma pessoa em qualquer tipo de empresa, o que o Poder Legislativo não fez ao publicar a Lei 12.441/2011. Assim, não cabe ao DNRC reeditar uma norma que não é de sua competência”.
Em verdade, carece de legitimidade ao DNRC para fazer tal restrição, o que se traduz em afronta ao princípio da legalidade. Ora, se compete unicamente à lei inserir vedações e restrições ao ordenamento jurídico para, em sendo o caso, limitar direito, e se esta, podendo, não o fez, que dirá o DNRC, cuja competência normativa deve se dar estritamente em respeito e observância às normais legais. Não é aceitável que o referido órgão extrapole os limites de sua competência e inove o texto legislativo, mormente para cercear direito, quando a lei nesse aspecto nada restringiu. Afigura-se que o DNRC, ao editar a Instrução Normativa nº 117, se excedeu no exercício de suas atribuições e, em seu afã normatizador, passou a legislar sobre a matéria, porquanto impôs vedação não prevista em lei, para além da órbita de suas funções.
Nesse sentido mais uma vez aponta o professor Alexandre Cateb em coautoria com Júnior Ananias Castro e Pedro Henrique Rezende: “a Lei n. 12.441/2011 não vedou expressamente a constituição de Eireli por pessoas jurídicas, sejam elas de direito privado ou de direito público interno, como se depreende da expressão genérica pessoa, utilizada pelo caput do art. 980-A do Código Civil, quando dispôs acerca da titularidade da empresa individual de responsabilidade limitada. Salvo melhor juízo, a mens legis do instituto foi no sentido de deixar permissão implícita para que pessoas jurídicas pudessem ser titulares de Eireli, tanto que quando quis se referir especificamente às pessoas naturais ele o fez, como se depreende da análise do § 2˚ do novel art. 980-A da Lei Civil”.
Ao mesmo propósito, sob o fundamento da ausência de legitimidade do DNRC e carência de razoabilidade do impedimento estipulado, a jurisprudência vem demonstrando orientação tendente a permitir a instituição de EIRELI por pessoas jurídicas. Assim, a despeito da orientação do DNRC, já há decisão judicial em sentido favorável a constituição de EIRELI por pessoa jurídica. Esse foi o entendimento expressado em decisão liminar proferida pela Justiça Comum do Estado do Rio de Janeiro, no processo de nº 0054566-71.2012.8.19.0001, autorizando a transformação de sociedade limitada em EIRELI.
No mesmo sentido foi a decisão monocrática proferida pela Justiça Federal do Estado de São Paulo, que concedeu liminar autorizando o registro de EIRELI por pessoa jurídica pela Junta Comercial do Estado de São Paulo, por considerar que “não há distinção de pessoas naturais e jurídicas como as titulares de uma empresa individual de responsabilidade limitada”.
Parece mesmo não haver distinção em face da nova lei, principalmente ao se perquirir pelas alterações introduzidas ao projeto legislativo que deu origem ao texto legal. Ao se analisar o contexto de surgimento da Lei nº 12.441/2011, desde o projeto de lei nº 4.605/2009, que, com algumas modificações, nela resultou, ressai ainda mais abusiva a determinação do DNRC. Isto porque o referido projeto contemplava originalmente a possibilidade de constituição de EIRELI apenas por pessoa natural, como se vê da redação do seu art. 985-A: “Art. 985-A. A empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por um único sócio, pessoa natural, que é o titular da totalidade do capital social e que somente poderá figurar numa única empresa dessa modalidade”.
Contudo, após as alterações que lhe foram acrescidas, suprimiu-se a palavra ‘’natural’’ de sua redação, de modo que, encerrada a tramitação do projeto e aprovada a lei, passou o caput do mencionado art. 985-A (art. 980-A da nova lei) a contar com a disposição normativa atual, genérica, simplesmente fazendo referência à pessoa sem qualquer distinção. Parece, pois, evidente, que a alteração sofrida pelo projeto de lei não teve outra razão senão a de ampliar o rol de pessoas autorizadas a instituir EIRELI, permitindo sua constituição não somente por pessoas naturais, mas também por pessoas jurídicas.
Sobre o assunto, mais uma vez, elucida Alexandre Bueno Cateb: “Pretendendo solucionar a questão, o DNRC editou em 22 de novembro de 2011 a Instrução Normativa nº 117, que “Aprova o Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”. Neste manual (item 1.2.11), ficou estabelecido que as Juntas Comerciais não procederão ao arquivamento de atos constitutivos de EIRELI’s constituídas por pessoas jurídicas. Devemos recordar que o projeto de lei nº 4.605/2009, que motivou a elaboração da Lei nº 12.441/11, previa de forma expressa a possibilidade de uma pessoa natural ser titular do capital social. Contudo, o projeto sofreu modificações e a redação da lei promulgada, ao mencionar que “a empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social”, permite a interpretação de que tal pessoa possa ser física ou jurídica”.
Acerca da circunstância de modificação do texto do projeto de lei, comenta ainda o presidente da JUCESP, in verbis: “Voltando a uma análise sobre a concepção legislativa durante todo o processo de edição da norma, é fato que o texto original do Projeto de Lei de criação da Lei 12.441/11 (PL 4.605/2009) fazia referência expressa à constituição de Eireli apenas por pessoa natural (pessoa física). Porém, com o trâmite do processo de edição da norma, verifica-se que o legislador, intencionalmente, excluiu a condição de que as pessoas com o direito de exercer a titularidade de uma Eireli fossem apenas pessoas naturais”.
Por tudo isso, entende-se desarrazoada e abusiva a imposição do DNRC, e pondera-se também razoável opinar pela ilegalidade da Instrução Normativa nº 117 de 2011, face a exorbitância na atuação do DNRC em estabelecer proibição não veiculada em lei. Considera-se que não há motivo a sustentar a retirada da prerrogativa da instituição de EIRELI por pessoas jurídicas, sobretudo quando, ao que tudo indica, a intenção legislativa revelada pela alteração ao projeto de lei foi justamente oposta à vedação do órgão.
Reputa-se que o referido órgão, ao estabelecer proibição à instituição de EIRELI por pessoas jurídicas, impondo restrição não prevista na lei, não apenas se excedeu no exercício de suas atribuições, como tolheu a eficácia social da norma, em flagrante descompasso com o escopo legislativo e com o necessário clamor de empresários e sociedades empresárias.
Marília Figueiredo Álvares da Silva
Data: 25/07/2014
Melo Campos Advogados