O direito à moradia é uma garantia fundamental assegurada pelo artigo 6º da Constituição Federal, sendo essencial para a proteção da dignidade da pessoa humana e da entidade familiar. Nesse contexto, a Lei 8.009/90 foi promulgada para regular e fortalecer essa proteção, instituindo a impenhorabilidade do imóvel residencial de modo a evitar que as famílias sejam privadas de seu lar em razão de dívidas.
O artigo 1º da Lei 8.009/90 estabelece que: “O imóvel residencial próprio de casal, ou de entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos parceiros, ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei.”
O bem protegido pela lei é, portanto, aquele imóvel utilizado como residência permanente pela entidade familiar. A norma tem por objetivo evitar a perda do lar em razão de dívidas, protegendo a moradia como bem essencial à subsistência digna da família.
A doutrina majoritária aponta que a Lei 8.009/90 concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição, vez que, ao garantir a moradia, assegura-se as condições mínimas de existência digna. Também é reconhecido que o imóvel cumpre a sua função social ao ser destinado à moradia da família, conforme previsto no artigo 5º, XXIII, da Constituição.
Não obstante a proteção legislativa, existem hipóteses de exceção à impenhorabilidade, sendo elas previstas no artigo 3º da Lei 8.009/90, nas quais se destacam (a) dívidas decorrentes de financiamento para aquisição de imóvel próprio; (b) obrigações trabalhistas e previdenciárias de empregados domésticos; (c) dívidas fiscais relativas ao próprio imóvel; (d) penhora para pagamento de pensão alimentícia; (e) garantia hipotecária dada no contrato de financiamento; e (f) imóvel dado em obrigação decorrente de fiança em contrato de locação.
Isso porque, apesar de ser um direito que visa assegurar algumas garantias constitucionais, o legislador reconheceu que a impenhorabilidade não pode ser utilizada de forma abusiva. A doutrina destaca que o uso fraudulento do instituto para burlar credores configura abuso de direito, violando os princípios da boa-fé e da segurança jurídica e, nesse sentido, autoriza o afastamento da garantia da impenhorabilidade.
Os tribunais superiores e estaduais desempenham papel crucial na interpretação da Lei 8.009/90, adaptando-a às novas exigências sociais e econômicas. A seguir, são abordados os principais entendimentos recentes.
STJ: manutenção da impenhorabilidade sobre imóvel de sociedade empresária utilizado como residência de sócio, apesar de seu oferecimento caução em contrato de locação comercial
Em caso analisado pelo STJ, foi discutida a possibilidade de penhora de imóvel residencial que havia sido ofertado como caução em contrato de locação.
O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do caso, entendeu que a cautela no contrato de contratação comercial não é capaz de guardar a regra de impenhorabilidade prevista na Lei 8.009/1990. No seu voto, o relator destacou que as abordagens à impenhorabilidade são tributárias, não admitindo interpretações ampliativas, e citou antecedentes do próprio tribunal que reforçam que a penhora não é permitida quando o imóvel caucionado é utilizado como residência familiar (AREsp 1.605.913 e REsp 1.873.594). Conforme entendimento firmado, “a proteção ao bem de família se estende também aos imóveis registrados em nome de sociedade empresária, desde que sejam utilizados para moradia do sócio e de sua família”. Mais ainda, o ministro enfatizou que a exceção prevista no artigo 3º, VII, da Lei 8.009/1990, que admite a penhora do imóvel de fiador em contratos de locação, não se aplica a situações relativas à caução.
O ministro esclareceu que, embora os patrimônios de sócio e sociedade sejam juridicamente distintos, na prática, é comum que bens de empresas de pequeno porte sejam utilizados indistintamente por ambos. Assim, “o imóvel que serve de residência ao sócio não pode ser penhorado apenas por ser registrado em nome de pessoa jurídica”.
Nesse sentido, ao negar o recurso especial, o ministro reforçou que o fato de o imóvel ter sido dado em cautela não retira a proteção legal conferida ao bem de família, mesmo que ele pertença a uma sociedade empresária de pequeno porte.
TJSP: afastamento da impenhorabilidade de imóveis de alto valor
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem, em alguns casos, adotado uma interpretação analítica inovadora sobre a impenhorabilidade do bem de família, especialmente em situações que envolvem imóveis de luxo, considerados de alto padrão.
Essa postura reflete a busca do Judiciário por um equilíbrio entre o direito do credor de satisfazer seu crédito e a garantia de moradia digna ao proprietário que ocupa um imóvel de elevado valor. O objetivo é fornecer etapas que contemplem os interesses de todas as partes envolvidas no processo de execução.
Nesse contexto, o TJSP tem admitido a possibilidade de penhora de bens de família de luxo ou alto padrão, desde que o valor obtido com a alienação do imóvel permita a reserva de uma quantia significativa para a aquisição de uma nova moradia digna ao devedor e sua família. Essa medida visa garantir que o pagamento do subsídio não seja frustrado, promovendo maior justiça na execução civil.
Destaca-se dois precedentes do TJSP: no primeiro caso (proc. 2280186-94.2020.8.26.0000) foi autorizado a penhora de um imóvel avaliado em R$ 1,5 milhão, com arrecadação de R$ 900 mil, sendo que o valor excedente foi reservado aos executados para a aquisição de uma nova residência digna; e num segundo caso (2011061-57.2019.8.26.0000), envolvendo um imóvel avaliado em R$ 6,4 milhões, o Tribunal determinou que um terço do valor arrecadado fosse destinado à aquisição de uma nova moradia para o proprietário e sua família, enquanto o restante foi utilizado para satisfazer o crédito exequendo.
Embora essa interpretação ainda seja minoritária, ela representa um avanço importante no debate sobre a mitigação das regras de impenhorabilidade. Tal posicionamento busca ampliar a efetividade dos processos de execução, promovendo uma reflexão sobre a questão especificamente social e econômica do instituto do bem de família. Além disso, oferece soluções mais equilibradas e evita o abuso de direito por parte dos devedores que, mesmo mantendo elevado padrão de vida, desvirtuam essa proteção legal para frustrar os direitos de credores de boa-fé, utilizando-a como verdadeira medida de blindagem patrimonial.
STJ: Afastamento da impenhorabilidade quando há indícios de fraude contra credores
Em recente decisão, a 3ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 2.134.847, por unanimidade, que um imóvel usado como residência familiar pode ser penhorado em casos de fraude contra credores, mesmo sem o registro formal de hipoteca. Relatada pela ministra Nancy Andrighi, a decisão destacou que a proteção conferida pela Lei 8.009/90 ao bem de família não pode ser usada para práticas fraudulentas.
O caso envolveu um desenvolvedor insolvente do Rio Grande do Sul que ofereceu um imóvel como garantia em contrato de contrato, mas não registrou hipoteca e, em seguida, transferiu o imóvel para um amigo próximo. A manobra foi considerada como fraude nas instâncias inferiores, tendo o STJ confirmado que a alienação tinha o objetivo de frustrar credores, com o terceiro adquirente ciente da situação.
A ministra ressaltou que, embora não houvesse registro formal da hipoteca, a fraude contra credores ficou evidente, tornando o imóvel passível de penhora, mesmo sendo usado como residência familiar. A decisão reforça o combate da Justiça aos atos fraudulentos em detrimento da proteção do bem da família.
STJ: Delimitação de quais dívidas de natureza alimentar autorizam o afastamento da impenhorabilidade
Ao analisar a exceção prevista no artigo 3º, inciso III, da Lei 8.009/90, relativa às dívidas alimentares, o STJ tem, reiteradamente, entendido que tal previsão legal abrange apenas pensões alimentares, não havendo possibilidade de interpretação extensiva.
O STJ compreendeu que “pensão alimentícia” está estritamente relacionada aos alimentos familiares, de modo que as “verbas remuneratórias”, ainda que sejam destinadas à subsistência do credor (natureza alimentar), não podem ser equiparadas aos alimentos oriundos de relações familiares.
O termo “natureza alimentar”, introduzido no ordenamento jurídico pela Constituição de 1988, posteriormente conceituado pela EC nº 30/2000, mas pode se referir a várias verbas. Atento à importância das verbas remuneratórias, o constituinte equiparou tal crédito ao alimentício, atribuindo-lhe natureza alimentar, com o fim de conceder um benefício específico em sua execução, qual seja, a preferência no pagamento de precatórios, nos termos do art. 100, § 1º, da CRFB.
Apesar da importância data às verbas remuneratórias de natureza alimentar, ainda que sejam destinadas à subsistência do credor, o STJ entende que estas não são equivalentes aos alimentos de que trata o Código Civil, isto é, aqueles intrinsicamente vinculados às relações familiares ou aos alimentos indenizatórios ou voluntários em favor de uma pessoa que, necessariamente, deles depende para sobreviver. Justamente por isso é que tais alimentos exigem um tratamento mais sensível ainda do que aquele conferido às verbas remuneratórias dotadas de natureza alimentar.
Nesse sentido, o STJ tem restringindo a exceção da impenhorabilidade efetivamente aos débitos decorrentes de pensão alimentícia, privilegiando a proteção do bem de família.
Conclusão
A impenhorabilidade dos bens de família, ao proteger o direito à moradia, desempenha papel essencial na concretização da dignidade da pessoa humana e na preservação do núcleo familiar. Contudo, sua aplicação prática exige uma análise cuidadosa das propostas previstas na Lei 8.009/90 e da boa-fé nas relações jurídicas.
A análise das decisões recentes revela uma postura equilibrada dos tribunais superiores e estaduais. Por um lado, há a proteção rigorosa ao direito à moradia, considerando-o essencial à dignidade humana. Todavia, aponta-se que os tribunais coibiram abusos, evitando que o instituto da impenhorabilidade seja utilizado como instrumento de fraude ou má-fé.
A tendência é de uma interpretação progressista da Lei 8.009/90, adaptada às demandas contemporâneas, mas sempre respeitando os princípios constitucionais e a função social da propriedade, buscando harmonizar o direito à moradia com outros princípios constitucionais, garantindo um equilíbrio necessário entre proteção ao devedor e preservação dos direitos dos credores.