Acostumado a julgar grandes companhias, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) tem se deparado cada vez mais com cartéis de pequeno e médio porte, nos quais empresários demonstram total desconhecimento da legislação de defesa da concorrência. São comerciantes que registram acordo de preços em cartório para evitar que alguém descumpra o combinado, revendedores que publicam tabelas com aumentos em jornais, alegando ser “transparentes”, e há até quem recorra ao próprio Cade para reclamar que um dos integrantes do cartel descumpriu-o em “prejuízo” das demais empresas do setor.
O órgão antitruste já descobriu convites de reuniões para fixar preços, e-mails em que empresários pedem aos rivais para serem “bons companheiros” e até “códigos de ética” para que ninguém deixe de agir como o combinado. Esses casos são considerados bizarros, pois são feitos por empresários que acreditam que é normal fazer acordos com concorrentes para fixar preços, margens de lucro e condições de venda. Eles são cada vez mais constantes nas pautas de julgamento do Conselho e mostram que, em setores médios e pequenos da economia, o que prevalece muitas vezes são tentativas de estabelecer condições iguais de comercialização para todos.
O Sindicato das Empresas de Segurança Privada de São Paulo (Sesvesp), por exemplo, pediu providências ao Cade para que uma companhia do setor aderisse ao acordo de preços. A denúncia acabou se transformando numa confissão de culpa – sindicato e empresas foram multados em até R$ 383 mil.
Na mesma sessão, em que julgou esse caso, em agosto, o órgão antitruste analisou uma acusação contra revendedores de combustíveis do interior de São Paulo que estabeleceram o cartel em atas de reunião e em sucessivas trocas de e-mails. “Ficou acertado que seremos bons companheiros dos revendedores, não aceitando guerra de preços”, diz um documento apreendido pelo Cade.
Em outro caso julgado no mês passado, a prova da combinação não estava em atas de reunião nem em e-mails, mas em algo mais inusitado. Revendedores de botijões de gás de Goiânia passaram a anunciar nos jornais quais seriam os novos preços e as datas dos reajustes. Sob a alegação de que deveriam ser “transparentes”, os revendedores tornaram públicos os acordos de preços e acabaram condenados. “Nós temos mais um exemplo aqui de cartel ‘publicizado’, com anúncio de tabelamento de preços e tentativa de uniformização do mercado”, afirmou o presidente do Cade, Vinícius Carvalho, durante o julgamento.
Ainda em agosto, o Cade julgou taxistas que aboliram o taxímetro e passaram a cobrar a mesma tarifa por trajeto, em Uberlândia, no interior de Minas Gerais. Eram R$ 12 para viagens curtas e R$ 24 para trechos mais longos. A denúncia foi feita por um visitante da cidade que se espantou com as tarifas.
Desde maio, quando condenou grandes cimenteiras a pagar R$ 3,1 bilhões, num dos maiores casos de cartel no país, o órgão antitruste passou a analisar cada vez mais processos de cartéis menores, restritos a determinadas cidades e a grupos reduzidos de companhias. Os conselheiros se deparam com empresas que sequer sabem o número da Lei Antitruste (nº 12.529) e procuram até mesmo ser didáticos na tentativa de explicar a política de defesa da concorrência.
“A falta de cultura da concorrência é generalizada no Brasil”, afirma Vicente Bagnoli, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Ela é fruto da nossa história de mercado fechado e monopólios, em que fazer acordos com concorrentes era a coisa mais normal, afinal, todos têm interesses em comum.”
Em muitos casos, o desconhecimento da lei é brutal. O economista Ricardo Ruiz, que foi conselheiro até janeiro passado, foi relator de um processo em que uma entidade recorreu ao Cade porque uma empresa do setor estava vendendo a preços menores do que o mínimo estabelecido numa planilha. A Associação Paranaense dos Produtores de Cal também encaminhou ao órgão antitruste atas de reunião em que ficou acertado que ninguém poderia cobrar abaixo do “custo mínimo” estabelecido e, com isso, acabou oferecendo provas para ser ela mesma condenada.
Muito comuns em cidades do interior, esses cartéis prejudicam consumidores de baixo poder aquisitivo e, por isso, o Cade considera que o dano é muito grande. “Muitos casos atingem os consumidores mais frágeis”, disse o conselheiro Gilvandro Vasconcellos. Ele cita o caso das padarias de Sobradinho, cidade-satélite de Brasília. Quase duas dezenas de estabelecimentos aumentaram o preço do pão francês para R$ 0,20 em toda a cidade. Ironicamente, o grupo fazia as reuniões para ajustar os preços num restaurante chamado “Armação”. Um dono de padaria se recusou a aumentar o valor e passou a sofrer ameaças dos concorrentes. O caso chamou a atenção da polícia, que usou disfarces para buscar indícios de crime nas padarias. Mas não foi difícil identificar o cartel. Todas as padarias ostentavam o mesmo cartaz, com idênticos erros de português, informando que o preço do pão francês subiria para R$ 0,20 em tal data.
Outro caso envolveu revendedores de extintores de incêndio do Distrito Federal. Com medo de que alguém “furasse” os acordos de preços, os empresários simplesmente registraram em cartório uma planilha com os valores que deveriam cobrar. O registro surpreendeu os integrantes do Cade. Além dos preços, o documento levava em conta os custos das empresas e um lucro fixado em 30% para cada uma. A ata foi assinada pelos 20 integrantes da Associação das Empresas de Equipamentos Contra Incêndio do Distrito Federal e tornou-se a principal prova para condená-los em multas que atingiram R$ 1,4 milhão.
Alguns cartéis acabam recebendo ajuda do Ministério Público, justamente umas das autoridades que deveriam coibir essa prática. No Ceará, o MP local recebeu denúncia de que a Drogaria São Paulo estava praticando preços predatórios contra a Pague Menos. Representantes do MP instituíram um piso para os descontos. O objetivo da medida era o proteger o consumidor, mas ela teve efeito contrário. Uma vez instituído o piso, todas as farmácias passaram a fixar os descontos dali para cima. Ou seja, o MP acabou fixando um valor mínimo a partir do qual todos elevaram os preços, desmontando a livre concorrência no setor.
Data: 15/09/2014
Fonte: Valor Econômico (www.valor.com.br)