Nos termos do artigo 114, inciso I, da Constituição da República, compete a Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Assim, a competência dessa Justiça Especializada é determinada pela natureza jurídica da questão controvertida, qual seja, aquela decorrente de uma relação de trabalho.
Porém, o Supremo Tribunal Federal – STF – vem decidindo que a Justiça do Trabalho não tem competência para apreciar ações que versem sobre prestadores de serviços autônomos, contrariamente ao que consta no texto constitucional.
Cite-se as decisões que tratam de trabalhadores autônomos, tais como representantes comerciais e transportadores autônomos de cargas, nas quais houve a declaração de incompetência da Justiça do Trabalho a partir de uma análise equivocada do alcance do conceito da relação de trabalho.
O Supremo Tribunal Federal, por intermédio do voto vencedor do Ministro Roberto Barroso (RE 606.003/RS), com repercussão geral (Tema 550), fixou a tese de que compete à Justiça Comum o julgamento de ações que envolvam contratos de representação comercial autônoma, uma vez que, segundo entendimento então firmado, não há relação de trabalho ou de emprego entre as partes, sendo a representação comercial um contrato típico de natureza comercial, que pode ser realizada por pessoa física ou jurídica.
Permite-se transcrever a ementa:
DIREITO CONSTITUCIONAL E DO TRABALHO. REPERCUSSÃO GERAL. CONTRATO DE REPRESENTAÇÃO COMERCIAL AUTÔNOMA, REGIDO PELA LEI nº 4.886/65. NÃO CONFIGURAÇÃO DE RELAÇÃO DE TRABALHO PREVISTA NO ART. 114, CF.
- Recurso Extraordinário interposto contra decisão proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho, em que se alega afronta ao art. 114, incisos I e IX, da Constituição Federal, com redação dada pela EC 45/2004. Na origem, cuida-se de ação de cobrança de comissões sobre vendas decorrentes de contrato de representação comercial autônoma, ajuizada pelo representante, pessoa física, em face do representado.
- As atividades de representação comercial autônoma configuram contrato típico de natureza comercial, disciplinado pela Lei nº 4.886/65, a qual prevê (i) o exercício da representação por pessoa jurídica ou pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis e (ii) a competência da Justiça comum para o julgamento das controvérsias que surgirem entre representante e representado.
- Na atividade de representação comercial autônoma, inexiste entre as partes vínculo de emprego ou relação de trabalho, mas relação comercial regida por legislação especial (Lei n° 4.886/65). Por conseguinte, a situação não foi afetada pelas alterações introduzidas pela EC n° 45/2004, que versa sobre hipótese distinta ao tratar da relação de trabalho no art. 114 da Constituição.
- A proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer relação entre o contratante de um serviço e o seu prestador seja protegida por meio da relação de trabalho (CF/1988, art. 7º).
Precedentes.
- Ademais, os autos tratam de pedido de pagamento de comissões atrasadas. O pedido e a causa de pedir não têm natureza trabalhista, a reforçar a competência do Juízo Comum para o julgamento da demanda.
- Recurso extraordinário a que se dá provimento, para assentar a competência da Justiça comum, com a fixação da seguinte tese: “Preenchidos os requisitos dispostos na Lei 4.886/65, compete à Justiça Comum o julgamento de processos envolvendo relação jurídica entre representante e representada comerciais, uma vez que não há relação de trabalho entre as partes”.
Ora, a relação de trabalho é gênero que possui inúmeras espécies como a relação de emprego, a relação de autônomo, de representante comercial, de cooperado, de avulso etc.
A relação de emprego se configura quando presentes os requisitos insertos no artigo 3º da CLT, isto é, quando uma pessoa física presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Já a relação de trabalho está ligada à execução de uma atividade ou serviço, porém alguns dos requisitos do artigo 3º da CLT não estão preenchidos.
Em ambos os casos, a literalidade da constituição da república é pujante – “compete a Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho”, mas, para o Supremo Tribunal Federal, esta regra constitucional ganhou novas interpretações e a literalidade não é mais tão relevante.
Tanto é que, no que tange ao transportador de carga, o STF decidiu que a Justiça do Trabalho é incompetente até mesmo para analisar se existe vínculo de emprego (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RCL 43.544).
Ementa:
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. VIOLAÇÃO AO QUE DECIDIDO NA ADC 48. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM PARA JULGAR CAUSA ENVOLVENDO RELAÇÃO JURÍDICA COMERCIAL. AGRAVO INTERNO PROVIDO.
- No julgamento da ADC 48, o Ministro Relator Roberto Barroso consignou em seu voto que a Lei 11.442/2007, “disciplina, entre outras questões, a relação comercial, de natureza civil, existente entre os agentes do setor, permitindo a contratação de autônomos para a realização do Transporte Rodoviário de Cargas (TRC) sem a configuração de vínculo de emprego”.
- As relações envolvendo a incidência da Lei 11.442/2007 possuem natureza jurídica comercial, motivo pelo qual devem ser analisadas pela justiça comum, e não pela justiça do trabalho, ainda que em discussão alegação de fraude à legislação trabalhista, consubstanciada no teor dos arts. 2º e 3º da CLT.
Assim, de acordo com o voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes toda e qualquer ação envolvendo transportador autônomo de cargas, que discuta critérios próprios da Lei nº 11.442/2007 ou que postule a declaração de vínculo de emprego deve ser processada e julgada pela Justiça Comum. Somente na hipótese de a Justiça Comum entender que não foram preenchidos os requisitos da Lei nº 11.422/2007 é que a competência passa a ser da Justiça do Trabalho.
Acontece que este entendimento não tem se limitado ao transportador de carga, nem à interpretação da lei 11.442/2007, pois, inúmeras Reclamações Constitucionais tem sido julgadas pelo STF nesse mesmo sentido.
Note-se, a decisão do STF transfere para a Justiça Comum a análise dos elementos configuradores do vínculo empregatício, desconsiderando que a Justiça do Trabalho tem competência prevista constitucionalmente para tanto, sendo a única que poderia decidir não só quanto à existência ou não de vínculo empregatício, como também seria a justiça competente para analisar as demais relações de trabalho.
Nada obstante às críticas quanto as violações à competência da Justiça do Trabalho e a insegurança jurídica que isto tem provocado, não se vê hoje, acompanhando as decisões dia a dia do STF, qualquer perspectiva de mudança. Ao contrário, tornou-se rotineiro cassar decisões da justiça do trabalho, independentemente do contexto fático e peculiaridades das ações, em total desprestígio à Carta Magna num claro processo de esvaziamento de competência da justiça laboral.
Contudo, como não se pode negar hoje a atuação política da Suprema Corte, nem ao menos seu alinhamento político, cabe seguir acompanhando eventuais mudanças que podem advir da necessidade de satisfação de interesses políticos, que sim, mais que a constituição, possa redirecionar a opinião dos ilustres ministros.