Por Cláudia Lima Marques, Amanda Flávio de Oliveira e Ana Cândida Muniz Cipriano 

Nos dias 17 e 18 de outubro passados, a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas em Comércio e Desenvolvimento) promoveu a Primeira Reunião do Grupo de Experts em Direito do Consumidor (IGE), em Genebra, com o objetivo primordial de estabelecer um programa de trabalho em política do consumidor em nível global para o período 2016-2020. Estiveram presentes delegações de quase 70 países, além de representantes de organizações intergovernamentais, de organizações não governamentais, acadêmicos e representantes do setor privado. O Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor) foi convidado a participar e esteve representado por sua ex-presidente Cláudia Lima Marques, pela presidente Amanda Flávio de Oliveira e pela associada Ana Cândida Muniz.

A criação do Grupo Intergovernamental de Experts em Direito do Consumidor constitui evento digno de nota. Desde o ano de 1946, a Organização das Nações Unidas (ONU) promove fóruns de discussão acerca de práticas restritivas de mercado. O primeiro desses encontros, realizado há exatos 70 anos, em Londres, teve como pauta as preocupações dos Estados com as práticas monopolistas, os cartéis, entre outras condutas anticoncorrenciais. No decorrer das décadas seguintes, diversos eventos sucederam essa primeira iniciativa. Mais recentemente, desde o ano de 2000, um Grupo de Experts em Direito e Política da Concorrência vem se encontrando anualmente no âmbito da UNCTAD, para discutir estratégias de promoção de um mercado efetivamente concorrencial em seus Estados e, de forma cooperativa, também em nível global.

Até o presente ano de 2016, as discussões específicas atinentes às questões consumeristas ocorriam a título de eventos paralelos à reunião do Grupo de Experts em Direito da Concorrência. A autonomia concedida à temática, ao se criar um fórum específico para seu debate no âmbito da ONU, faz pensar. Talvez esse movimento possa ser compreendido como um reconhecimento de que não se obterá pleno desenvolvimento econômico mundial sem uma adequada proteção a um dos agentes de mercado, a saber, o consumidor. Igualmente, pode representar a percepção, pelo Organismo Internacional e/ou seus Estados membros, de que, sozinha, a política concorrencial é insuficiente no objetivo de se promover o mercado sadio que conduz ao desenvolvimento sustentável[1].

A agenda da primeira reunião oficial de experts em direito do consumidor incluiu: i) a recente Revisão das Diretrizes das Nações Unidas para defesa do consumidor, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 22 de dezembro de 2015[2]; ii) as estratégias eficazes para se envolver os Estados, as empresas e os consumidores na obtenção do desenvolvimento sustentável; iii) os desafios da economia colaborativa; iv) além de uma reflexão sobre o desafio de se conseguir obter instituições eficazes na promoção da política consumerista. Ademais, discutiu-se a metodologia a ser empregada nas próximas atividades do grupo, tal como aquela que deverá nortear a realização de “Peer Review” da política de defesa do consumidor entre os países membros que se voluntariarem.

Ao longo de todos os painéis, foi evidenciada a circunstância da maior complexidade propiciada pela chamada “vida digital” e suas inevitáveis consequências no consumo e na proteção do consumidor. Nesse sentido, representantes da Índia e da França manifestaram preocupações com aquilo que denominaram uma nova revolução no mercado. A Costa Rica, especificamente, revelou apreensão com as repercussões do mundo digital nos serviços financeiros, e os crescentes problemas derivados de um mercado em que as transações financeiras digitais representam quase que o total das transações dessa ordem. O representante do Quênia manifestou suas preocupações com os problemas de consumo crescentes em resposta a uma penetração dos serviços de telefonia móvel a mais de 80% de sua população.

Entre os temas consensualmente de maior preocupação entre os países membros destacaram-se o comércio eletrônico, assuntos financeiros, saúde e segurança do consumidor, cooperação internacional e economia colaborativa. Pontualmente no que se refere a esta última, foi evidenciada a circunstância de que o consumidor, nesse novo cenário, em muito se difere do consumidor tradicional. Entretanto, entendeu-se não se poder concluir, a partir dessa constatação, que esse “novo” consumidor não necessite de proteção. Se os velhos métodos não se aplicam, é preciso novos métodos mais adequados para lidar com a realidade que se impõe. A presidente da associação Consumers International, referindo-se às novas circunstâncias impostas pela economia colaborativa, manifestou-se no sentido de que, apresentando-se como desafio a todas as nações, a economia de compartilhamento ensejará a necessidade de obtenção de uma solução transnacional.

A professora Cláudia Lima Marques foi convidada pela UNCTAD a integrar o pequeno grupo de painelistas, especificamente compondo a mesa redonda sobre a necessidade de engajamento de todos os atores para o alcance dos objetivos das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. Na ocasião, a professora analisou o Objetivo 17 da ONU, defendendo a importância da cooperação internacional entre todos os atores (Estados, empresas e sociedade civil) e identificando as ferramentas já disponíveis para alcançar os objetivos da ONU em matéria de consumo sustentável e proteção dos consumidores.

Ao longo dos dois dias de reunião também ocorreram eventos paralelos, dentre os quais deve ser destacado o lançamento da nova versão do Manual das Nações Unidas para Proteção ao Consumidor[3] após a revisão das Diretrizes de Proteção ao Consumidor de 2015. O manual constitui documento essencial para os estudiosos do Direito do Consumidor e sua versão digital encontra-se facilmente acessível na internet. Também merece referência a apresentação dos resultados do Programa Compal[4]. Trata-se de projeto que, com o apoio da secretaria de Assuntos Econômicos da Suíça, presta assistência técnica nas áreas de concorrência e proteção ao consumidor para Estados como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai.

Ao final da reunião, foi aprovada a pauta para a segunda reunião do grupo de experts, prevista para 2017. Deliberou-se, como prioritário, que a Secretaria da UNCTAD providencie relatórios prévios e estudos em dois temas considerados essenciais: a) estrutura legal e institucional para proteção do consumidor e; b) comércio eletrônico. Também se deliberou por encorajar os Estados membros da ONU a definirem a data de 15 de Março como o Dia Internacional dos Consumidores.

A primeira reunião do Grupo de Experts em Proteção ao Consumidor no âmbito das Nações Unidas foi coordenada pela nova Diretora das áreas de Política para Concorrência e Proteção ao Consumidor da UNCTAD, a renomada doutora Teresa Moreira, de Portugal, que destacou a importância da participação de atores originários da sociedade civil organizada e da academia para o êxito da iniciativa. O futuro do direito internacional dos consumidores começa a tomar forma, nas discussões e na agenda deste novo órgão da UNCTAD, o IGE on Consumer Law an Policy. Esperamos que os estudos deste órgão possam, ao exemplo do que aconteceu com o IGE de concorrência, servir para estimular à política e a proteção dos direitos dos consumidores no cada vez mais globalizado e sofisticado mercado de consumo que vivemos.


[1] Na abertura da 15a sessão do grupo de experts em Direito e Política da Concorrência, ocorrido na data de 19 de outubro, o Vice-Secretário Geral da UNCTAD, Sr. Joakim Reiter, foi enfático em afirmar que a política concorrencial representa um meio, não um fim em si mesma. Em sua opinião, a concorrência representa um meio de combate à pobreza em nível mundial.
[2] Ver mais em: https://unctad.org/en/Pages/DITC/CompetitionLaw/UN-Guidelines-on-Consumer-Protection.aspx
[3] https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/webditcclp2016d1.pdf
[4] https://unctadcompal.org

Data: 26 de outubro de 2016

Fonte: ConJur / https://www.conjur.com.br/2016-out-26/garantias-consumo-onu-acompanha-evolucao-relacoes-consumo-nivel-transnacional#author